sábado, 28 de novembro de 2009

Do vento invernal

Agora sim, via-o avançar confiante pelo seu caminho; e sentia-se orgulhoso. Dava-lhe satisfação ele ser diferente e o caminho que seguia ser mais direito e elevado do que aquele que ele próprio percorrera. A comparação não o humilhava. Não se arrependia de ter vivido como vivera. Se olhasse para trás, a sua vida podia assemelhar-se a uma intrépida viagem marítima; e as terras em que atracara tinham sido fecundas: vinhas cobertas de cachos que colhera sempre no ponto justo, nem verdes nem murchos. Tinha gozado a vida. Agora a vinha estava despida; parras tenazes mantinham-se ainda presas aos ramos; mas já sentiam os primeiros sacões do vento invernal...

in A Ilha de "Giani Stuparich"

foto de "ma®ia"

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Se me comovesse o amor

Se me comovesse o amor como me comove a morte dos que amei, eu viveria feliz.
Observo as figueiras, a sombra dos muros, o jasmineiro em que ficou gravada a tua mão, e deixo o dia caminhar por entre veredas, caminhos perto do rio.
Se me comovessem os teus passos entre os outros,os que se perdem nas ruas, os que abandonam a casa e seguem o seu destino, eu saberia reconhecer o sinal que ninguém encontra, o medo que ninguém comove.
Vejo-te regressar do deserto, atravessar os templos, iluminar as varandas, chegar tarde.
Por isso não me procures, não me encontres,
não me deixes, não me conheças.
Dá-me apenas o pão, a palavra, as coisas possíveis. De longe.

"Francisco José Viegas"
foto de ma®ia

sábado, 21 de novembro de 2009

Um dia


Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

"Sophia de Mello Breyner Andresen"
foto de "ma®ia"