terça-feira, 7 de maio de 2013

Há pessoas que não sabem fazer casas



Sentei-me na beira da cama, fechei os olhos com muita força e vi-te pequenino a brincar com o teu jogo de caricas no terraço. A tua mãe sentada ao sol, com o chapéu vermelho, de pano turco, pousado na cabeça. Ela já não está no terraço. O chapéu, guardamo-lo , assim como todas as memórias e valores. Sim, nós aprendemos a fazer casas.

foto de maria

domingo, 16 de janeiro de 2011

Tu disseste



Tu disseste "quero saborear o infinito"
Eu disse "a frescura das maçãs matinais revela-nos
segredos insondáveis"
Tu disseste "sentir a aragem que balança os
dependurados"
Eu disse "é o medo o que nos vem acariciar"
Tu disseste "eu também já tive medo. muito medo.
recusava-me a abrir a janela, a transpôr o limiar da
porta"
Eu disse "acabamos a gostar do medo, do arrepio que
nos suspende a fala"
Tu disseste "um dia fiquei sem nada. um mundo inteiro
por descobrir"
Eu disse "..."

Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"

"Mão Morta"

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O príncipio do fim


E perguntei-te se também morrias.
E tu disseste: «Sim».
E eu disse-te: «Que vai ser de mim?»
E tu disseste que nesse momento já seria crescido.
E eu disse-te: «Não vejo a relação».
E tu disseste que sim, que havia uma relação.
E eu disse: «Bom».
E tu disseste que todos nós tínhamos de morrer.
E eu perguntei-te se para sempre.
E tu respondeste : «Sim».
E eu disse-te: «Então, e o céu como é?»
E tu disseste que isso era depois.

Sim.

E eu disse que havia de levar-te flores.
E tu perguntaste-me: «Quando?»
E eu respondi: «Quando morreres».
E tu fizeste: «Ah!»
E eu disse que havia de levar-te flores, e disse também: «Papoilas».
E tu disseste-me que era melhor não pensar nisso.
E eu disse-te: «Porquê?»
E tu disseste-me: «Porque sim».
E eu disse: «Bom». E depois perguntei-te se nos íamos encontrar no céu mais tarde.
E tu respondeste-me: «Sim».
E eu disse: «Ainda bem».

Sim.

E depois perguntei-te quem a tinha inventado.
E tu disseste: «Inventado o quê?»
E eu disse: «Essa história da morte».
E tu disseste: «Ninguém».
E eu disse: «E o resto?»
E tu disseste: «Qual resto?»
E eu disse: «Essa história do céu».
E tu disseste: «Ninguém».
E eu disse-te: «É boa». E disse-te ainda: «Pois». E depois disse-te: «Quando morreres, faço da tua barriga um tambor».
E tu disseste-me: «Isso não se diz».
E eu disse-te: «É pecado?»
E tu disseste: «Não».



Arrabal, in "Baal Babilónia" estampa, 1977
trad. Ernesto Sampaio

foto de maria
texto encontrado no Blog "Cinquenta e Três"

sábado, 21 de agosto de 2010

De muito perto



"Palavras, coisas vagamente sujas ou perdoadas. esvoaçando, devassas.
Dedos de muito perto entrelaçados, húmidos, armadilhas, questões de astronomia, coisas vagamente segredadas, voláteis, cheias de azul."
Francisco José Viegas, in Se me comovesse o amor"
foto de maria

quarta-feira, 2 de junho de 2010


Hoje
quando estava a sair de casa
olhei para o relógio e percebi que devias estar p'ra chegar
e então deixei a luz da cozinha acesa
porque é a que gasta menos
para que não encontrasses a casa às escuras na chegada
mas depois pensei melhor
ao chegares
vendo a luz acesa
podias pensar que eu estava em casa a fazer-te uma sandes de atum ou um cachorro
e ias ficar desiludida
porque eu estou a sair
e quando chegares já me fui
e vais sentir a mostarda ou a maionese no canto da boca
mas vai ser mentira
por isso
para não te desiludir
saio deixando atrás de mim a casa escura
para não te magoar

João Negreiros, in «a verdade dói e pode estar errada»

sábado, 29 de maio de 2010

Young Marble Giants

Foi disso que não falamos toda a noite: como teria sido possível ouvir, em devido tempo, o despojamento que - agora- já só do nada nos consegue aproximar às vezes?

in, Jukebox 1&2 " Manuel de Freitas"



quarta-feira, 26 de maio de 2010

Borboletas


Borboletas no estômago, batendo asas contra todas as paredes do corpo - não deixando que ele adormeça, inquieto e insatisfeito, voltado para dentro e para o passado.
in Borboletas, de Francisco José Viegas
foto : a insustentável leveza do ser